Coming down the stairs of the nursing home,
a Kandinsky. Composition VII.
I can’t recall if there, by the heart of the structure,
anybody else had minded those colours.
It was centered on the wall at eye level,
suspended over the stepped abyss.
In the composition, bodies danced one last
waltz towards extinction.
It hang a few metres from that room,
the one where her husband had died.
Straight ahead, down the hall,
it was room number 94. At the doorway,
my eye sharply glimpsed the painting.
The lamp was red, the colar white,
the typewriter coloured as its ink.
She always sat down to write before bedtime,
organizing and deferring death.
When she arduously rose in the morning,
soon night would return blue as a vast sea
to overflow and pin her down.
But those were her eyes, relics of herself
in na exact reflection of time.
She only kept the basics: a permanent pen,
a pencil and a rubber,
the sober frame enclosed by the door,
the typewriter. She observed it immovable, with her face
stamped on the depths of the hall, her voice
in the dyeing things, her angles bordering
a portrait of raw skin:
she cracked facing the floor, flexing the ceiling over
the passage. This room contained her lifetime, the memory fixed
between paper lines shaked by the recite of sound.
It was a diary where she polished
thoughts as abstract as these.
She wrote aphorisms with an inkpot full of time,
chased me inside of her, the steps hovering upon the windows,
writing down between a cold spoon and
a clean bed, what her insights had reaped: a red
lamp, a white collar,
the same old blue backdrop where her days rested.
At the left side of her desk,
several frames caught my eye.
Each one of them was handmade
and nestled photos of family, friends and me.
They embraced oblivion
like arms holding kindred scenes,
bowed to the milky walls
that nurtured their vivid colours.
On the other side, a sewing machine, yarn,
needles and a thimble hung over the cradle of a chair.
In her free time, she weaved linings, sheets, and blankets;
she knew exactly the measurements of her bed, the excess cloth,
the leftovers she piled up in the cupboard.
There, in the vessel of her fingers, were embroidered the clothings of days
in varied shapes and colours, a charcoal pattern
stamped on the shape of the dress worn on that Ball Night.
About that time, her husband would place her left hand
on her waist and her right hand on her back, carve
the silk deep inside that dress in mating rythm.
She stayed there, framed by her morning hues, in the last dance
time had given her memory to etch.
Today, she endures in my arms, in the dept of this centre
where music bends over itself in a tight hug.
Intimately, I told her: “One last night before disconnecting the machine.”
Translated by Tomás Gorjão
De quem vem a descer as escadas do lar,
um Kandinsky. Composição VII.
Não me recordo se ali, pelo coração da estrutura,
houvera mais alguém a atentar no assombro da cor.
Estava centrada na parede, ao nível dos olhos,
suspensa sobre o abismo dos degraus.
Na composição, os corpos dançavam uma última
valsa a caminho da extinção.
Permanecia a uns metros daquele quarto,
o mesmo em que seu marido tinha morrido.
Sempre em linha recta, era o número 94.
Alcancei o corredor. Entre os limites da porta,
perscrutava o quadro com a justeza de um esgar.
O candeeiro era encarnado, o colarinho alvo,
a máquina de escrever da cor da própria tinta.
Ela escrevia sempre antes de se deitar.
Arrumava a morte, prescrevia-a.
E, ao levantar-se custosa com a manhã,
logo a noite retornava com o azul de um imenso mar
que a transbordava e inscrevia.
Mas tal eram-lhe os olhos, artefactos de si mesma
com o reflexo preciso do tempo.
Guardava apenas o essencial: uma caneta permanente,
um lápis e uma borracha,
o parco traço da moldura enquadrada na porta,
a máquina. Observava-a inalterável, com o seu rosto
impresso na profundidade do corredor, o seu timbre
na coloração dos objectos, a sua aresta circunvalando
o retracto de pele exposta:
fendia-se ao arquear a face sobre o soalho, a arquitrave
na passagem. Estavam ali os seus anos, a memória fixa
entre as linhas de papel que se agitavam na récita do som.
Era um diário onde passava a limpo
pensamentos tão abstractos quanto este.
Escrevia aforismos com a carne das horas no tinteiro,
perseguia-me por dentro de si, os passos de vento contra a janela,
apontava o que, entre a colher de sopa fria e o gesto
de ajeitar a cama, lhe colhia a percepção: um candeeiro
encarnado, um colarinho alvo,
o sempre mesmo fundo azul em que os dias se inserem.
À esquerda da sua secretária de madeira,
várias molduras tomaram-me a atenção.
Cada uma delas era concebida manualmente e guardava,
no seu regaço, fotografias de familiares, de amigos, minhas.
Abraçavam o esquecimento com as suas longas hastes,
como braços a conter paisagens vizinhas,
dispunham-se curvadas sobre o leite das paredes
que as nutria das cores que a fotografia ostentava.
Do outro lado, uma máquina de costura pendia
sobre o berço da cadeira, mais as linhas, as agulhas e o dedal.
Nos tempos livres, tecia forros, lençóis, cobertores;
sabia a exacta medida da sua cama, o excedente,
os resíduos de tecido que, nas gavetas do armário, amontoava.
Lá, no recipiente dos dedos, estava bordada a roupagem do dia
com as suas várias cores e formas, a matriz de carvão
estampada no molde do vestido usado na Noite de Baile.
Por essa altura, o seu marido conduzia-lhe a mão esquerda
à cintura e a direita ao perímetro das costas, esculpia
a seda nas entranhas desse vestido ao ritmo do acasalamento.
Ficara emoldurada ali com a coloração da manhã, na última dança
que o tempo lhe concedera à memória, em gravura.
Hoje, permanece em meus braços, na profundidade do centro
onde a música se dobra sobre si mesma, num abraço.
Intimo, disse-lhe: «uma última noite antes de desligar a máquina».